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Foto do escritorMónica Guerra Rocha

Todo dia ela faz tudo sempre igual


“Todo dia ela faz tudo sempre igual Me sacode às seis horas da manhã Me sorri um sorriso pontual E me beija com a boca de hortelã” Cotidiano – Chico Buarque

Nas últimas semanas as coisas viraram de ponta cabeça, sabias? A mudança de casa, viagens, resfriado, febre, novos projetos, desilusões, expectativas, revisão de expectativas, sonhos, crianças, gatos, amigos, encontros e desencontros, nascimentos, despedidas, terapia, malas, caronas, piano, violão, chorinho, choros maiores, sorrisos, chá, sopa, pão, abraços.

Dentro da impermanência ficamos buscando eixo no meio do caos e da nova ordem que vem junto. Acorda, bom dia, água e limão, dormiste bem?, lava o rosto, manga e couve? couve não! só por hoje sem couve, com gengibre; então linhaça, tá bom? ok, linhaça, e a tapioca de quê? metade, tou sem fome, QTO, com tofu, com o guacamole que sobrou do jantar, fazes o café?, pode colocar a mesa! que horas é a reunião?

Transições são pontes entre lugares que fomos e onde ainda não estamos. Transições são afinal oportunidades de estar no momento presente, ocupada em lamber as próprias aventuras e desventuras de transcender, seguir e entender que nada nunca fica para sempre. Que nada é para nunca mais.

Moíamos o café todos os dias, escolhíamos o grão. Fazias a tapioca, com a crosta que inventamos, tomate em fatias, temperos que vinham, e eu batia o suco, misturava a couve, o gengibre, a banana madura – ou sem couve, ou sem banana, com maracujá. Os pratos na porta do lado direito do armário, a frigideira pendurada na parede, a faca grudada no imã, a goma de tapioca da dona Sônia que vende na saída do metrô.

Há duas semanas que não como tapioca. Nem vejo a dona Sônia. A Alana, com 5 anos, é quem agora me orienta sobre o lugar dos pratos e onde guardar os copos de vidro.

Quando partiste, eu cozinhei a mandioca e assei o pão de queijo da tua tia. Depois fui eu quem partiu, viajei para São Paulo e no hotel o dia começava com aqueles banquetes com cara europeia. Pães, morangos (e seus mimos:) ), algumas bananas, geleias, nutella, manteiga, suco, café, chá inglês. No segundo dia espreitei o balcão preparado para a comitiva japonesa que tinha chegado no mesmo hotel e decidi misturar a oferta europeizada com o desjejum japonês: Tsukemono (legumes em conserva), okayu (mingau de arroz), tofu e missô. No Rio de volta, estou temporariamente na casa de uns amigos, e tenho começado o dia com o pão artesanal, café, frutas frescas inteiras e geleias que as meninas amam todas as manhãs.

Comentaste comigo que tens estranhado retomar a vida de antes do liquidificador, levei embora comigo: “Vou voltar ao suco de caixinha!”, e que tens comido granola de manhã. E eu ainda não consegui retomar a tapioca ao acordar. Hoje revivi a água com limão, é um começo.

Os rituais de cada dia estão impressos com muita clareza no que chamamos de hábitos alimentares, ou rotinas da comida. Comer tapioca contigo fazia tanto sentido quanto faz dividir a banana com a Alana de manhã, como fazia sentido o pão de domingo que o meu pai comprava para ser esquentado na segunda de manhã.

TODO O DIA ELA FAZ TUDO SEMPRE IGUAL

A rotina e o ritual da refeição é uma combinação ponderada entre demandas e valores. O que tem para comer, o apetite que trazemos, o que esperamos desse encontro, o que queremos oferecer. É a equação entre sobrevivência e convivência, corpo e cultura.

Inventamos horas para comer e comidas para as horas porque precisamos organizar o tempo e assegurar valores e contacto. Comemos para nos relacionarmos, e tornamos ritualísticos esses encontros quando eles passam a estruturar nossos valores e nossos afetos. Entendi que a estrutura do que somos se tece nos encontros e prioridades que desenhamos – almoço às 12h30, janta depois do anoitecer, desjejum ao acordar. São horas marcadas para repetidos pontos de encontro com o tempo e as tradições dos outros, para as trocas coletivamente pré agendadas em grupo. Como se marcássemos horário para fazer parte de uma identidade que trespassa o ingrediente e existe no momento de todos nos conectarmos com um propósito – alimentar, sobreviver. É o que nos resta das reuniões em volta do fogo que permitiram que a evolução humana existisse. Em cada lugar isso pode mudar, e em momentos de transição, ficamos no limbo entre o que era o código anterior e qual será o próximo.

Nas áreas rurais é por vezes comum que a primeira refeição seja a mais abastada, muitas vezes comendo o que restou do jantar do dia anterior. Meu avô sempre queria comer sopa pela manhã, e eu não entendia. Nas cidades do ocidente importamos alguns modelos e padronizamos pre conceitos sobre o que se deve ou não comer ao despertar. É assim em cada momento, em cada ritual. Comemos quase sempre quando é previsto e o que é previsto que se coma.

Alguns suportam a ideia de que já no amamentar esse ritmo deve ser colocado – de 3 em 3 horas.

Cada um tem seu metabolismo, seu apetite, sua própria evolução e desenvolvimento, mas as 3 horas são acima de tudo uma forma de ir introduzindo à rotina e ao ritmo que nossa cultura e nosso sistema organizacional foi desenhando como efetivo: amamentar se torna não mais um escutar e responder a uma demanda específica mas a orientação para um código social materializado em calendário de mamadas.

E ME BEIJA COM A BOCA DE CAFÉ

A identidade e a cultura vão se comunicando através dos comportamentos e da rotina, que é como trazemos o ensinamento para o coletivo e combatemos o individualismo dentro dos grupos que pertencemos. Compartilhar, dividir, colaborar, saborear, comer, são verbos plurais e de expansão em coletivo. Relacionar, abraçar, amar, são as pontes que nos permitem fazer isso.

Não era tapioca, café, ou vitamina. Não é pão, geleia, fruta. Arroz ou missô. Sopa da sobra do meu avô. Não é desjejum, almoço, jantar. É saudade, memória, identidade, amor. Rotina é o ritual de trazer para cada dia os valores que nos desenham. Comendo desenhamos juntos.

Rotinas refletem os pensamentos, comportamentos e gostos que as pessoas internalizam e decretam ao longo do tempo como resultado das estruturas sociais e culturas em que viveram.

(Bourdieu, 1984 ; Warde & Hetherington, 1994 ) Em https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2644457/

Rio de Janeiro, 30/04/2017

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