Quando te sintas triste menina- dizia a minha avó- entrança o cabelo, prende a dor na madeixa e deixa escapar o cabelo solto quando o vento do norte sopre com força.
O nosso cabelo é uma rede capaz de apanhar tudo, é forte como as raízes do cipreste e suave como a espuma do atole.
Paola Klug
Cortei os cabelos há alguns anos atrás. Curtinho, joãozinho, como chamam por aqui. A infância toda tive cabelos longos, que a minha mãe enfeitava com adereços que combinavam com as roupas. Agora, eles cresceram, e o que mais sentia saudade era de poder entrançá-los.
Quando tudo se transforma e a impermanência bate insistente em cada passo, recorro à rede. Aos afetos, aos amigos, aos amores, às meditações, os gatos, as flores, os tachos, a feira, os cheiros, os sabores. Quando tudo se transforma e não sei mais o que vem depois, recorro ao sonho e encaixo o medo por baixo do braço, levo-o comigo, cuido e acarinho, solto-o quando vem o vento Norte. Queria muito aproveitar uma festa junina e invadir-me de milho. Comprei a canjica e fui inventar de fazê-la pela primeira vez, enquanto tocava um forró e eu dançava pela cozinha. Sem experiência, não imaginei que aquela porção viraria uma panela gigante que eu não daria conta de comer. Convidei amigos, arrumei a casa, aprontei a mesa, preparei quentão, fiz bolo de Fubá, leite de amendoim, e a canjica foi temperada em versão vegana. Fiz a paçoca com amendoim e rapadura, enfeitei o coração. Olhei o espelho e os cabelos já longos me pediram uma trança. Divididos em três partes fui enrolando, acarinhando, e aprisionando no meio deles toda a solidão de uma canjica ainda sem visita.
A festa junina no Brasil resulta do encontro entre as celebrações jesuíticas chegadas com os colonos que celebram as colheitas do solstício de verão com os rituais indígenas da colheita do milho que se dá por esse período. É uma celebração do alimento, da terra, do que se colhe, do que se planta, da ponte entre dois mundos onde eu sigo morando.
Ao preparar o milho, preparo os cabelos. Desfolham-se no meu país as espigas, em cantos, em rodas, mulheres trocam olhares, jovens festejam em euforia, espiga após espiga, descabelando os fios, tirando as cascas, na esperança que o milho vermelho surja e um possa gritar “ Milho-Rei”! Nesse momento os abraços são compartilhados e os namorados têm seus beijos permitidos, a dança se espalha pela alma. A tradição da desfolhada do milho acontece perto do equinócio do Outono, em finais de Setembro, mas ao fazer a canjica, ao bater a paçoca, ao preparar a mesa, ao trançar os cabelos, tudo existe no mesmo momento nesta casa, dentro de mim. Aprisiono os medos numa trança, como quem libera os beijos numa espiga. Permitindo que ciclos se encerrem, que festas os celebrem, que os encontros aconteçam, que o amor se divida, e que os abraços se multipliquem.
Foi chegando um depois do outro. Olhares, sorrisos e partilhas. A canjica que me fez dançar na cozinha agora entregava essa dança em forma de afeto aos que escolheram participar da roda, desfolhar esse novo momento em celebração. Desmancharam-se colheradas dentro das bocas, os rostos avermelharam com o quentão preparado a várias mãos, e de repente todos éramos reis, milhos-reis, que se permitiram espalhar a alegria da boa colheita. De repente o cabelo trançado eram fios de tantas histórias que quando tecidas nos protegem e nos impulsionam. E no caldeirão dos segredos que se trocavam, nós fazíamos nossa fogueira de São João.
Acabada a canjica, rematada a paçoca, todo o quentão tomado, dancei pela sala, desamarrei a trança, o vento do norte entrou pela janela ainda aberta.
Somos feitos dos afetos que alimentamos.
Comendo, mudamos os nossos mundos.
Rio de Janeiro, 01/07/2017.
*Fotografia tirada na Nicarágua por Candelaria Rivera, do ensaio fotográfico: “Amor de Campo”.