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Foto do escritorMónica Guerra Rocha

Grãos de Poder


Mas como diz o ditado e haverá de se esperar

Depois de tudo plantado

Fazendeiro pede pra Severinin desocupar

Já tinha até fruta madura

Jirimum enrramando no terreiro

E tinha até um passarinho

Que além de ser seu vizinho

Ficou muito companheiro

Saga de Sevirinin - Vital Farias

Maio 2017. 10 produtores rurais chacinados no Pará.

13.07.2017 . CCJ rejeita a investigação contra o presidente Michel Temer barrando o prosseguimento do inquérito do STF de corrupção passiva.

Tem coisas que ainda são muito difíceis de entender, outras são difíceis de aceitar, outras difíceis de não falar, não posicionar.

Sou Brasileira, nascida em Portugal, totalmente entregue a fazer de alguma forma, alguma coisa que possa contribuir para que eu materialize o acolhimento no país e que me faça historicamente sanar algumas dívidas históricas, entre elas o colonialismo feudalista que desenhou grande parte do que ainda permanece hoje como território no Brasil. Mas principalmente, que me faça ser parte de uma mudança urgente.

Não voto no Brasil, não tenho cidadania, a minha autodenominação como Brasileira nascida em Portugal vem de um lugar profundo que não mentalizo demais. Que não sinto de menos.

Estou fora do país no momento e acompanhando pouco, mas tem gritos vindos daí que hoje ecoaram com muita força.

A chacina dos 10 trabalhadores rurais no Pará, ainda sob apuração, têm todo o recorte de um crime que apenas encontra nesse terrível episódio uma micro materialização sobre o que se passa. A chacina de 10 trabalhadores rurais é o culminar de anos, de séculos de lutas e resistências entre a macro propriedade e o real uso e valorização da terra. Entre agronegócio e feudalismo e a agroecologia e resistência.

10 corpos baleados, sem vida. Mais uns 4 feridos. Os demais fugidos, certamente apavorados. O Brasil é o país em que mais ambientalistas são assassinados. 2016 registrou dois recordes que nos levam a juntar algumas pontas: número de mortes no campo e conflitos por terra, de mãos dadas com o aumento do desmatamento.

É o país que por um lado tem o impeachement de uma presidente e em seguida um presidente inelegível. Que tem na câmara dos deputados uma representação muito simbólica da composição, interesses e forças que atuam de fato e que fazem política pública acontecer. Ou política menos pública, ou uma mescla das duas que até hoje me custa entender, decifrar. Ou que às vezes é melhor entender menos para que seja possível ficar e sim, resistir.

Mas, o que isso tem a ver com...comida?

Vamos lá, bem resumidamente.

A Frente Parlamentar da Agropecuária (vulgo, bancada Ruralista) tem 207 dos 513 deputados presentes na Câmara. É dos maiores grupos representados e defende fundamentalmente os interesses do agronegócio, principalmente da produção intensiva de monoculturas de soja e milho. Em momento de alta descredibilidade do governo e sua presidência, terreno fértil para que negociações aconteçam com deputados e seus interesses, e se tem grupo com interesses e diretrizes claras, é a FPA. Sim, decisões de todas as pautas e temáticas, são tomadas mediante negociações entre os donos do poder, e nessa barganha vão-se delineando as pautas sociais, econômicas e as mais básicas e profundas decisões políticas de primeira instância: por exemplo, tirar uma presidente ou manter um outro, barrando o inquérito do Supremo Tribunal Federal.

A rejeição foi decidida no passado dia 13 de Julho. No dia 28 de Junho o presidente tem uma reunião com a FPA. Entre os integrantes dessa reunião, todos os que estão representados na CCJ votam a favor da rejeição.

No inicio de Julho é anunciado o plano Safra para 2017/2018, dia 11 o Banco do Brasil anuncia a entrega de R$103 bi em recursos para que o plano aconteça. O plano Safra é um pacote de recursos para a agricultura e agropecuária no país e vem de encontro com a perspectiva e metas do Ministro Blaggi de aumentar a produção da safra de grãos em 27,1%, atingindo 271 milhões de toneladas (representando 113 mi de soja e 100 mi de milho). Entre esse montante, R$14,6 bi têm como destino a agricultura familiar, o que representa uma pequena parte do montante.

No mesmo dia 11, é sancionada a lei que permite a concessão de título definitivo de imóvel a quem ocupa irregularmente terras da união. Essa é uma pauta de grande interesse pelo mesmo grupo.

Ao mesmo tempo, está em tramitação urgente o Projeto de Decreto Legislativo 119/2015 que prevê a construção de hidrovias no Rio Tapajós para escoamento de grãos sem necessidade de Estudo de Impacto Ambiental. Esse projeto tramita junto com o PDL 118/2015 e 120/2015, também para criação de hidrovias (e toda a infraestrutura adjacente a essas propostas).

Mas como o momento é complexo e intenso, podemos até dar uma espreitada mais profunda e entender o que afinal, tem comida a ver com a reforma da previdência?

Bem, muita coisa.

O governo está negociando um programa de parcelamento das dívidas do setor do agronegócio ao Funrural (equivalente à previdência), num montante de dívida estimado em R$10 bi, que poderá agora ser parcelado em 180 meses. Essa medida entra totalmente em diálogo com a necessidade de aprovação da reforma da previdência na Câmara, que necessita de 308 votos (estamos falando do interesse de uma bancada com mais de 200 representantes).

Mas, o que isso tem afinal a ver com a chacina do Pará?

10 trabalhadores rurais assassinados em suposto conflito com a polícia, que detinha mandado de prisão.

O país onde mais se mata ambientalistas (25% do total de assassinatos no mundo, em 2016), onde a propriedade dos grandes feudos segue replicada até hoje, onde a resistência se faz no microcosmos, onde a agroecologia segue lutando bravamente pela preservação da terra, da soberania alimentar, da biodiversidade ao mesmo tempo que luta pela própria sobrevivência.

A forma como a política pública é realizada diz cada vez menos sobre sistemas democráticos ou sobre poder do povo, e cada vez mais sobre como os interesses são colocados em pauta. O alimento está historicamente ligado a poder, conflito e democracia. Governos do café com leite, da soja e do gado, do mercado e da macroeconomia guiam as decisões sobre as vidas de cada um de nós. Não é metáfora, é fato, e se o que comemos muda a forma como o nosso corpo vive ao nivel microcelular, a forma como alimentamos o mundo muda na escala planetária as relações mais importantes de poder. o alimento existe dentro do sistema de mercado livre, padronizado e negociado e representa das maiores riquezas e transações globais.

Cabe a cada um entender onde se posicionar e como atuar dentro dessas forças: na micro escala, escolhendo o nosso próprio alimento, até à macro escala, escolhendo a nossa própria luta e como queremos existir nela.

A comida do amanhã existe nesse lugar, de reflexão, questionamento, que é o que representa, em um primeiro olhar, a possibilidade de um alimento democrático em um mundo globalizado. E de entender que tem toda uma trama de relações e ingredientes que estão muito mais profundas e presentes do que a ponta do iceberg onde vamos flutuando. O que comemos muda o mundo.

Amsterdam, 17.07.2017

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