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Desperdício de alimentos, ou o paradigma da escassez


Segundo o dicionário, desperdício significa “ato ou efeito de desperdiçar; esbanjamento”, ou “ato de gastar em excesso; esbanjamento”. Também podemos ler “falta de aproveitamento; perda” ou bem “o que não se aproveita; refugo, resíduo, resto.

Vamos analisar essa definição e esses sinônimos. O fato do desperdício ser visto como um “gasto” é uma visão muito reducionista, influenciada pelo nosso ponto de vista muito preocupado com os recursos financeiros. Do ponto de vista econômico, o desperdício é uma falha, uma ineficiência, já que a economia visa sempre um crescimento constante.

“Perda” já é um termo muito mais amplo do que o desperdício, e inclui outros sujeitos e outras motivações bem diferentes. O uso do termo resíduo também foge do que seria desperdício, pois resíduo é aquilo que sobra, que não tem mais valor, e já não é aproveitável, enquanto o desperdício é algo aproveitável. Mas com a comida não se brinca ou joga fora. Frases como essa provávelmente todos temos ouvido durante a infância, certo? Certo. A comida é um bém tão prezado que não podemos dizer que sobra, que não tem mais valor. Sempre tem um valor, foi criado para ter valor, foi criado para nutrir.

DESPERDÍCIO

Então voltamos lá na definição de desperdício. Se pensarmos em bens (produtos ou serviços), o desperdício será uma produção ou realização que não era necessária de acontecer; ou um bem que não foi aproveitado como o previsto ou apenas parcialmente aproveitado (ou até com outro fim distinto do que se previa). Geralmente o desperdício é lamentado, ao passo que o resíduo é alvo de repulsa.

Pode-se falar também de desperdício de tempo, quando se usa aquele tempo para realizar alguma tarefa aparentemente desnecessária ou inútil. Pensando em todas as opções possíveis de desperdício, este conceito acaba atrelado à produtividade e ao uso ineficiente de recursos, ou à relação entre o produto e seu fim predestinado. O que essas definições não transparecem são os motivos que existem por trás do desperdício, parecendo algo não intencional.

Quando falamos de desperdício de alimentos, se aplicarmos o mesmo olhar puramente da eficiência, e vendo as grandes quantidades que são desperdiçadas no mundo inteiro, podemos imaginar que alguma ação já estaria sendo aplicada para solucionar o problema. Da mesma forma como fábricas sempre são ajustadas para obter o máximo rendimento produtivo, o sistema não permitiria tamanha ineficiência. Mas o problema vai muito além, e é justamente por motivos econômicos que o desperdício de alimentos ajuda a manter a ilusão de crescimento constante. Segundo Maurizio Pallante, o desperdício de alimentos, mesmo parecendo à lógica de cada um de nós um absurdo, ele se torna necessário para manter a demanda de mercadorias em alta; sem ele, haveria uma diminuição do PIB. Ele argumenta que um sistema econômico baseado no crescimento não pode abrir mão desse esquema.

Como se exemplificaria isso? Muito fácil. O problema não mora longe de nós. Não é a primeira vez que no Brasil se lê uma notícia sobre descarte de grandes quantidades de tomates por parte de produtores “porque houve muita produção”: ao haver muita oferta, os preços baixam, mas baixam em níveis que o preço pago pelos atacadistas aos produtores, não cobrem os gastos com colheita e transporte até os centros de comercialização, descartando esses alimentos ainda no campo ou pelo caminho. Só em 2015, o tomate foi um dos alimentos que sofreu mais inflação no Brasil, de até 47%. E mesmo quando as perdas são devidas à danos físicos por pragas ou mau tempo, quem sai perdendo também é o agricultor. Quem controla os preços de mercado são os atravessadores, e esse é um dos pontos críticos desta questão.

escassez vs abundância

Assim que me deparei com o paradigma da escassez e da abundância o relacionei imediatamente com este problema. Veja bem: o paradigma da escassez parte da premissa que não tem para todo o mundo. Desta forma, temos medo de que falte. Isto provoca competição por recursos, e acumulo em estoques. Ao criar estoques, retiramos da circulação, diminuindo o fluxo. E com isto, aumentamos o custo de transação. Quando se aumenta o custo de transação, excluímos aqueles que não podem pagar. E assim, o paradigma se auto-realiza, ou seja: não tem para todo o mundo. Não é muito assim o que acontece com os alimentos? Produzimos muito a mais do que é consumido, e a comida é mal distribuída no mundo, excedendo onde já se tem, faltando onde precisa mais. O que é perdido ou desperdiçado hoje em dia poderia acabar com a fome no mundo.

Visto assim, o desperdício de alimentos, mesmo que sua definição possa recair de novo na visão produtivista e da eficiência –e não se deixe enganar a partir de agora-, é um desinteresse e um descaso pela nutrição e sobrevivência dos seres humanos no planeta, já que a finalidade do alimento é alimentar, e não ser uma moeda de troca para especular, afinal, com a saúde de todos nós.

Não quero terminar com essa mensagem negativa. O paradigma da abundância, justamente pelo oposto, começa a partir da suposição que tem para todo o mundo. Cada dia mais vemos iniciativas que partem de uma pequena hortinha que revolucionou um grupo de vizinhos, uma favela, que alimenta uma família, que os torna autônomos. Vemos novas associações de grupos de compras coletivas, de cestas de produtos orgânicos vendidos por cooperativas autogestionadas, de produtores organizando feiras para vender diretamente para o consumidor, de aplicativos para trocar alimentos, mudas, plantas. E adivinhe o resultado? A profecia se auto-realiza, é só acreditar.

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