Governança é um termo que tem se tornado recorrente nos debates sobre sustentabilidade e, sobretudo, na criação de processos inclusivos relacionados aos sistemas alimentares. Mas, afinal, o que é este termo que, inclusive, integra a Agenda 2030¹ e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU (Organização das Nações Unidas)²? E mais: como garantir que os mecanismos deste processo sejam aplicados?
O QUE É GOVERNANÇA?
Governança, governo e governabilidade são conceitos diferentes e que, às vezes, se confundem. Governança é, em essência, o processo de governar. Governos têm suas estruturas de governança, assim como empresas, movimentos sociais, e todos os grupos e coletivos que tomam decisões. Governança diz respeito mais aos processos de organização e coordenação social, e podem ter diversos formatos e estruturas - empresas, movimentos, governos, são governados de formas diferentes, certo? Assim, para falar de governança e para entender um mecanismo de governança, é importante olhar questões de hierarquia, redes, mercados e modelos organizacionais. Tudo isso vai afetar a governança - esta é simultaneamente resultado de modelos de organização social e, sobretudo, promotora de transformações nesses mesmos modelos e dinâmicas. (Bevir 2012)
A ação da FAO sobre governança para o desenvolvimento sustentável dos sistemas agroalimentares incide sobre a definição de governança enquanto conjunto de políticas e ações elaboradas para contribuir com o fortalecimento de instituições públicas e privadas, além da sociedade civil, e que deve responsabilizar cada parte dessas instituições com os devidos ajustes relativos à mudança, conhecimento, necessidades, riscos e oportunidades no combate à fome e na garantia da segurança alimentar e nutricional.
Falando assim, pode parecer apenas mais um amontoado de terminologias técnicas relacionadas a trabalhos institucionais. Mas, governança, quando olhada enquanto mecanismo de definição de políticas públicas, é o modelo que garante que estas políticas públicas sejam construídas e que permite tomadas de decisões.
Pela compreensão deste processo de governar, para que as políticas sejam eficientes e as decisões eficazes, é primordial ter a participação da sociedade e partes interessadas em todos os eixos, articulando seus interesses distintos, estruturando e priorizando questões, e implementando, monitorando e fazendo essas decisões serem cumpridas.
Resumidamente, governança é um mecanismo de fortalecimento das capacidades de tomadas de decisões, que pode tornar as ações coletivas eficazes, transparentes e inclusivas.
É importante destacar que nem toda governança é benéfica a todas as partes e atenta às especialidades de cada ator - e isso é delineado por diferentes camadas. Uma governança pode ser ruim, se entendermos que ela precisa de inclusão, pois existem processos totalitários, que não são regidos com transparência e equidade.
COMO SÃO ESTABELECIDOS OS MECANISMOS DE GOVERNANÇA?
Não existe cartilha. Não existe modelo. Existem guias possíveis e estruturas de programas e projetos já existentes que podem fornecer direções para criação de novas iniciativas. A análise de governação deve caminhar em sincronia com a concepção da política, além, é claro, de estar minuciosamente ligada às prioridades nacionais e às realidades econômicas e institucionais.
Para que as políticas formuladas sejam convincentes e estáveis precisam ter conexão com análise de governança, sendo construídas com base em evidências e métodos sólidos. Tudo isso depende de uma boa estrutura, que garanta construção e monitoramento coletivo e em colaboração.
Um ponto saliente no entendimento da criação de mecanismos de governança é ter clareza sobre os encaminhamentos e objetivos do processo. Isto quer dizer que é essencial direcionar às ações e, por isso, os espaços garantidos às instituições envolvidas no processo de construção de políticas devem prezar pelo interesse coletivo, buscar uma equidade entre as partes e atentar às realidades objetivas de cada ator social e o grupo que este representa.
QUEM SENTA À MESA NESSAS DECISÕES?
Se governança é o modelo para garantir tomadas de decisão coletivas, para que se atente às especificidades da população e busque conceber políticas mais inclusivas, participativas, que apontem a redução de desigualdades e equilíbrio de poder entre as partes, elas precisam de ser inclusivas.
Uma governança inclusiva entende que ter todos os atores sentados na mesma mesa de tomada de decisão não garante que o processo trará os resultados de transparência, efetividade e justiça pretendidos. Analisar conflitos de interesse e espaços de amplificação das vozes são questões basilares para equilibrar as desigualdades. Para uma governança eficaz é importante equalizar as vozes. Não é apenas sobre sentar todos à mesa, mas sobre onde cada um senta e o tamanho da cadeira que lhe é atribuída. Populações com direitos violados têm de ter suas vozes amplificadas uma vez que se encontram em um lugar de menor poder do que, por exemplo, quem tem mais recursos e capital e que coloca apenas oportunidades econômicas em jogo.
Nos sistemas alimentares urbanos, por exemplo, alguns conflitos e disputas comuns são: a pressão entre uso do solo (agricultura urbana e especulação imobiliária) entre comunidades tradicionais e demais atores com interesse nas áreas onde essas comunidades se encontram; o entendimento de cultura alimentar na sua diversidade ou a estigmatização e homogeneização no entendimento dessas práticas; os conflitos entre diferentes mecanismos de abastecimento alimentar (varejo e feiras, por exemplo); a relação entre as normas de vigilância sanitária e rastreabilidade e as práticas tradicionais de produção, processamento e comercialização; o conflito entre a oferta de alimentos in natura e a influência da propaganda de alimentos industrializados nos ambientes alimentares, entre tantos outros.
O Marco da FAO para a Agenda Alimentar Urbana³, publicado em português em 2020, aponta que o tema de governança inclusiva é uma prioridade para ativar os Sistemas Alimentares Urbanos. (FAO 2019)
O fortalecimento de processos de governança inclusiva destes sistemas criarão oportunidades de desenvolvimento e de aceleração dos ODSs, sendo que esta é uma preocupação medular da FAO, dos parceiros e de todas as partes interessadas.
Há um lembrete importantíssimo para quem conduzir qualquer processo que se baseie nos princípios de governança inclusiva dos sistemas alimentares: zelar pela integridade na abordagem de grupos minoritários (aqui destaca-se que não são menores em questão de dimensão e importância, mas sim em questões de histórico de acesso a direitos e capital político). É fundamental criar pontes e desenhar possibilidades, abrir espaço e amplificar as vozes daqueles que são historicamente invisibilizados e que têm seus direitos violados, ouvindo suas verdadeiras demandas e propostas, sem os estigmatizar.
UMA GOVERNANÇA INCLUSIVA COMO FORMA DE PRODUZIR POLÍTICAS PÚBLICAS ALIMENTARES URBANAS
Entender a diversidade de interesses entre os parceiros envolvidos, os desequilíbrios de poder na decisão dos processos e que a inflexibilidade das instituições cerceia as liberdades do processo são requisitos indispensáveis.
Mecanismos eficientes de governança inclusiva dos sistemas alimentares são conjuntos de práticas em que - primordialmente - todas as vozes são ouvidas e as especificidades de cada contexto têm suas demandas contextualizadas. Vale lembrar que estes mecanismos - para terem eficácia - devem levar em consideração não apenas as partes interessadas, mas dar também o peso certo a cada uma delas, nivelando as disparidades sociais. A estrutura, portanto, deve prezar pela equidade, tendo clareza de que grupos minoritários - em questões de acesso e representatividade - e partes afetadas, devem ocupar os espaços com maior peso. Tratar os desiguais desigualmente para garantir a igualdade ao final.
Conforme as definições de governança inclusiva dos sistemas alimentares desenhadas pela FAO, a definição do mecanismo de tomada de decisão compreende determinar políticas públicas, alocar recursos e tomar decisões que tenham relação com alimentação e agricultura, mas que envolvem os chamados trade-offs ou escolhas relevantes - situação onde há algum conflito de interesse e se tem de escolher uma saída em detrimento de outra.
Portanto, é essencial realizar recorte de gênero, classe, raça, religião e outras divisões apresentadas pelos grupos envolvidos para avaliar questões culturais como práticas que não estão comumente compreendidas nos mecanismos mais usuais de governança, garantindo um processo de aprendizagem coletiva, interativa e adaptativa que traga, sobretudo, respostas para problemas práticos. Daí a importância de se entender quem são as partes que conduzem estes processos - estruturas do poder público, organizações não governamentais, grupos com interesses econômicos, grupos com direitos violados - e qual o peso da fala de cada um.
¹ Agenda 2030 é um Plano Universal para o desenvolvimento sustentável, criado em 2015 pelos Estados Membros da ONU, integrado por quatro partes: declaração, Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), acompanhamento da Agenda 2030 e implementação.
² ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) são 17 marcos ambiciosos que buscam alcançar transformações positivas nas áreas ambiental, econômica, social e de desenvolvimento social. Junto dos 17 objetivos, existem 169 metas traçadas que correlacionam as temáticas definidas. Cada país deve basear-se nas metas globais e incorporar o que se busca atingir de acordo com os contextos locais.
Para saber mais sobre os ODS aplicados no Brasil, acesse:
³ Marco da FAO para Agenda Alimentar Urbana é um instrumento com abordagem multissetorial que oferece estratégias para lidar com as demandas relacionadas à insegurança alimentar e desnutrição nas cidades.
FONTES
Bevir, Mark. Governance: A Very Short Introduction. 2012.
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