O ano de 2019 marcou o lançamento de estudos e relatórios internacionais extremamente relevantes para a compreensão dos sistemas alimentares e seus desafios. As comissões da The Lancet pautadas no conceito da saúde planetária, dentre elas a EAT-Lancet Commission on Food, Planet, Health e a The Global Syndemic Commission, entregaram os estudos Food in the Anthropocene: the EAT–Lancet Commission on healthy diets from sustainable food systems, com sumário executivo traduzido para o português, e The Global Syndemic of Obesity, Undernutrition, and Climate Change: The Lancet Commission report que confirmaram ao mundo a intrínseca conexão entre sistemas alimentares e mudanças climáticas, além de indicar que, para além da fome e insegurança alimentar, a má-alimentação decorrente dos hábitos de alimentação adquiridos na segunda metade do século XX, fortemente ancorados no elevado consumo de ultraprocessados e na baixa diversificação de alimentos, provoca uma onda - ou pandemia - de obesidade que atinge países ricos e pobres indistintamente.
Esse foi ainda o ano em que o conceito de sistemas alimentares finalmente se consolidava internacionalmente, com toda uma divisão da FAO, a Agência da ONU para a Alimentação e Agricultura, dedicada à temática e alinhada com a Agenda Urbana trazida pela Conferência ONU Habitat III de 2016, dedicada a construir o Marco da FAO para a Agenda Alimentar Urbana (lançado em português no Brasil apenas em 2020), consolidando diretrizes e orientações globais para a estruturação de sistemas alimentares locais que pudessem promover saúde, equidade, sustentabilidade e desenvolvimento regional para as cidades.
No Brasil, era o ano da extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (o CONSEA) e consequente desnaturação do ainda jovem Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que tinha como uma de suas prioridades articular a agenda de alimentação e políticas públicas para sistemas alimentares entre os diversos entes federativos. Foi também em 2019 que se analisaram os dados do Mapa SAN 2018, do então Ministério do Desenvolvimento Social, que dava notícia de que menos de 1% dos municípios brasileiros tinham implementado planos plurianuais de segurança alimentar e nutricional ("Plano de SAN'’). Foi o ano, ainda, que acendeu a luz vermelha do risco da volta da fome, com a confirmação dos dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017 - 2018, que veio a ser finalmente publicada em 2020, indicando que a insegurança alimentar no país tinha extrapolado a linha de 5% da população - marco até então considerado definidor do ingresso ou não de um país no "mapa da fome mundial'.
Em meio a tudo isso, o Instituto Comida do Amanhã, dentro de sua agenda de Comida e Cidades e considerando sua missão institucional de divulgar conhecimento, estabelecer espaços de reflexão e facilitar processos de tomada de decisão em prol da transição dos sistemas alimentares, idealizou e começou a desenhar um projeto que pudesse colocar a agenda dos sistemas alimentares na pauta central dos governos municipais brasileiros, ao mesmo tempo em que estimulasse o desenvolvimento de planos estratégicos plurianuais de segurança alimentar e nutricional com a necessária visão sistêmica da alimentação, abarcando temas de assistência social a clima, de direitos humanos e saúde pública a desenvolvimento regional e geração de renda.
Alicerçado em metodologias de laboratório social, que buscam trabalhar a compreensão de desafios e a definição de soluções a partir do entendimento mais profundo das causas raízes da configuração de sistemas complexos, e na certeza de que a agenda deveria ser avançada não pela elaboração de mais um curso, ou congresso ou fórum de debates sobre o tema, mas sim a partir da troca de experiências facilitada por metodologia adequada. Considerando este contexto e o fato de que as políticas alimentares locais não podem seguir um padrão rígido de desenho e implementação, mas devem ser elaboradas a partir das demandas de possibilidades de cada território, e com escuta das partes interessadas, é que o Instituto Comida do Amanhã apresentou a seus primeiros parceiros, ainda em 2020, antes da pandemia de COVID-19, um projeto de laboratório de políticas públicas alimentares focada em cidades pequenas e médias do Brasil, o LUPPA.
Seguiu-se então o longo período difícil da pandemia e seus fortíssimos impactos para a agenda do abastecimento alimentar local, dentre todas as outras dificuldades enfrentadas no âmbito da saúde pública e geração de renda, para além dos desafios postos para a relação dos poderes municipais com o governo federal. Tudo isso potencializou a urgência e a necessidade do debate. A conveniência de um projeto que visava fortalecer as dinâmicas participativas e democráticas de construção e implementação de política pública, bem como destacar a importância da coerência e da interdisciplinaridade no planejamento e políticas públicas voltadas aos sistemas alimentares locais, somente se ampliou.
Assim, em agosto de 2021, quando o LUPPA foi lançado, todas as condições para seu sucesso e utilidade estavam postas, especialmente as parcerias que se formaram, como o apoio do Instituto Ibirapitanga e do Instituto Clima e Sociedade, e a cooperação com o ICLEI América do Sul, que muito contribuiu para formatar o desenho final do projeto para atração dos governos municipais brasileiros.
O LUPPA é, portanto, o Laboratório Urbano de Políticas Públicas Alimentares, em que representantes de diversos municípios do Brasil se unem para trabalhar na construção de uma agenda integrada de Segurança Alimentar e Nutricional e clima em suas cidades, idealizado pelo Instituto Comida do Amanhã, e hoje em correalização com o ICLEI América do Sul . Trata-se de uma plataforma colaborativa para apoiar e facilitar a construção de políticas alimentares municipais integradas, participativas, e com abordagem sistêmica. Seu objetivo é que as cidades estejam no centro do debate da agenda alimentar, tornando-as protagonistas no desenvolvimento de suas estratégias e políticas alimentares. Esta proposta é inédita e inovadora, não somente no Brasil, mas no contexto global como um todo.
Em um momento em que a agenda alimentar e a agenda urbana têm sido cada vez mais abordadas de forma interconectada, evidenciada pelo já referido Marco da FAO para a Agenda Urbana de Alimentos, lançada em 2019, com o objetivo de apoiar tomadores de decisão a implementar a agenda de alimentação urbana em suas cidades, o LUPPA surge enquanto uma ferramenta para auxiliar as cidades neste processo.
O LUPPA está baseado nas seguintes premissas: complexidade dos sistemas alimentares, ou seja, soluções isoladas e setoriais não resolvem; políticas públicas no âmbito local; territorialização dos sistemas alimentares, com o intuito de atender às diferentes demandas de cada território; coerência das políticas alimentares, incluindo integração da agenda dos sistemas alimentares em todos os setores das gestões públicas; governança, garantindo controle social e intersetorialidade; planejamento e estratégia, especialmente pelo Plano de Segurança Alimentar e Nutricional enquanto uma ferramenta de coerência e garantia de direitos.
Além disso, o formato do LUPPA se apoia em quatro pilares: intersetorialidade e participação social como peças chaves essenciais da governança necessária para a construção e monitoramento de políticas alimentares eficazes para o território, e aprendizado mútuo e vontade política como bases do trabalho metodológico desenvolvido e condições para a boa utilização da principal ferramenta preconizada pelo LUPPA, o plano municipal (intersetorial) de segurança alimentar e nutricional.
O desenvolvimento das estratégias ou plano plurianuais de políticas alimentares deve ser realizado de forma integrada, intersetorial, com participação social e a partir do correto diagnóstico do território. A identificação dos programas e melhores ações para endereçar os desafios identificados em cada território é apoiada e fortalecida pelas trocas entre as cidades. No entanto, não basta conhecer, diagnosticar, priorizar e planejar. O sucesso das políticas alimentares municipais - entendendo-se sucesso como a efetiva promoção de saúde, sustentabilidade e justiça social - só ocorre quando há vontade política da gestão pública.
A relevância e a forma de atuação do LUPPA têm base nas seguintes ideias:
Intersetorialidade: Os sistemas alimentares são complexos e envolvem diversos setores e aspectos ao longo de toda a cadeia do alimento, e também das estruturas que as condicionam. As políticas alimentares podem envolver aspectos desde a produção de alimentos (por exemplo, agricultura urbana), o abastecimento alimentar (por exemplo, mercados municipais), os meios de distribuição (por exemplo, feiras livres), as políticas de acesso a populações vulneráveis (por exemplo, cozinhas solidárias e restaurantes populares), as políticas de alimentação escolar, as medidas de incentivo à produção a partir das compras públicas de alimentos, as ações de combate ao desperdício de alimentos, as ações de educação alimentar e nutricional, como também as medidas de regulação dos ambientes alimentares (por exemplo, proibição de venda de determinados produtos em equipamentos públicos). Com o intuito de trazer a intersetorialidade para as discussões ao longo da realização das atividades do LUPPA, cada cidade participante indica um mínimo de duas pessoas para representarem a sua gestão, necessariamente oriundas de secretarias distintas.
Participação social: A participação da sociedade civil organizada, especialmente pelos conselhos de controle social, é fundamental para que haja uma pluralidade de vozes na construção e efetividade das políticas alimentares. Conhecer as demandas legítimas do território permite à administração pública definir corretamente prioridades e prever modos eficazes de monitoramento. Por isso, no LUPPA, cada cidade participante deve indicar um/a representante da sociedade civil que pertença ao órgão de controle social mais relacionado à agenda alimentar local, preferencialmente o Conselho Municipal de Seguranças Alimentar e Nutricional.
Aprendizado mútuo: A troca e partilha de experiências entre cidades de diferentes tamanhos e realidades tem papel fundamental para o avanço nas políticas públicas e ações de alimentação urbana, em particular pela possibilidade de poderem compartilhar não apenas suas boas práticas e seus sucessos, mas as trajetórias percorridas até lá e os desafios enfrentados, as soluções que se abandonaram no caminho e as alavancas que permitiram o maior impacto de suas ações. O LUPPA prioriza atividades que estimulem estas trocas em um espaço seguro e acolhedor para o debate e a reflexão, sem indicação de respostas certas mas estímulo à partilha de experiências. Além disso, conta com as cidades mentoras, prefeituras parceiras do projeto, que compartilham com as cidades participantes ferramentas, subsídios, conhecimento e referências para a estruturação de políticas públicas alimentares avançadas.
Vontade política: A elaboração e execução das políticas públicas dependem muito das equipes técnicas dos órgãos municipais, no entanto o sucesso das mesmas só ocorre com o comprometimento dos gestores e mandatários políticos. Para que as cidades se inscrevam no programa do LUPPA, as mesmas são solicitadas a apresentar uma carta de compromisso assinada por seu/sua prefeito/a, demonstrando compromisso político com a agenda alimentar no seu município.
O sucesso e ineditismo do desenvolvimento do LUPPA pode ser evidenciado não só pelo seu impacto na realidade das cidades participantes de suas edições, mas também em seu destaque em eventos de cunho acadêmico e científico. O Instituto Comida do Amanhã apresentou o LUPPA no VI Colóquio Agricultura, Alimentação e Desenvolvimento do Grupo de Estudos e Pesquisa em Agricultura, Alimentação e Desenvolvimento da UFRGS, em Porto Alegre - RS, nos dias 17 e 18 de novembro de 2022. O evento teve como enfoque os sistemas alimentares e a agricultura familiar em contextos disruptivos, contando com a participação de especialistas nacionais e internacionais.
Além disso, o Instituto Comida do Amanhã foi convidado a apresentar o LUPPA no I Encontro de Urban Living Labs do Brasil, realizado no dia 26 de outubro de 2022. O evento, foi promovido pelo Centro de Eficiência em Sustentabilidade Urbana – CESU/Teresina, estruturado pela Universidade Federal do Piauí – UFPI, e é um projeto piloto financiado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação – MCTI e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq que tem como objetivo constituir-se como uma unidade que realiza validação de tecnologias urbanas voltadas para a área das mudanças climáticas.
Finalmente, o LUPPA foi apresentado no dia 07 de março de 2023 no IV Congresso Latinoamericano de Teoria Social, no Grupo de Trabalho - Cidades Inteligentes e Sustentáveis: Possibilidades de Inovação na Gestão Urbana em Tempos de Mudança Climática.
O reconhecimento do LUPPA pode ser observado também pela publicação do artigo Developing a Blueprint to Transform Brazil’s Public Food Policy do 50by40, uma coalização de organizações dedicadas a reduzir a produção e o consumo de produtos animais industriais em todo o mundo em 50% até 2040. Além do texto Construindo uma Plataforma Colaborativa para Transformar os Sistemas Alimentares Brasileiros publicado pela Reos Partners, parceira metodológica do LUPPA, que conta um pouco do histórico e do desenvolvimento do Laboratório e da metodologia.
Assim, o LUPPA enquanto iniciativa de inovação urbana e que provoca a transformação da cultura de gestão pública pode ser evidenciado pela sua proposta metodológica que ressalta tanto a importância da participação de diferentes atores na construção da agenda de políticas alimentares focadas nas demandas e possibilidades de cada território, quanto a necessidade de compreender as causas raízes dos desafios e dados eventualmente negativos encontrados em cada cidade. O LUPPA possibilita um impacto escalável de transformação da cultura de gestão pública em temas de sistemas alimentares, fomentando estruturas de governança inclusiva e intersetoriais. __
O LUPPA é um projeto do Instituto Comida do Amanhã @comidadoamanha, em correalização com o @iclei_sams com o apoio pleno do @iibirapitanga e do ICS - Instituto Clima e Sociedade, apoio especial da @UEnoBrasil, @embrapa e do @wwfbrasil e apoio institucional da FAO Brasil - Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, @insta.act, @alimentacaoconscientebr, e @hsiglobal.
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