Falar de agricultura, em geral, nos remete às paisagens rurais, mas você sabia que é possível produzir alimentos em áreas próximas às cidades, ou até mesmo dentro delas? Conhecida como Agricultura Urbana e Periurbana, esta prática tem como princípio o cultivo de plantas e a criação de animais no espaço urbano ou no entorno deste, com características bem definidas como o uso de resíduos orgânicos urbanos como adubo; proximidade com o mercado consumidor; e claro, neste caso os agricultores são os cidadãos urbanos.
No contexto de crescimento da população urbana global e da pandemia da Covid-19, a Agricultura Urbana e Periurbana apresenta não apenas a função de produzir alimentos. As hortas e áreas destinadas para a produção estão muitas vezes conectadas com movimentos ambientais e sociais que reivindicam o direito à cidade, a promoção de cidades mais saudáveis e sustentáveis, espaços ao ar livre e o contato com a natureza. Sabemos que existem desafios atrelados a esta prática, mas a intenção aqui é mostrar que este modelo pode desempenhar um importante papel na transição para sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis, inclusivos e empoderadores, biodiversos e culturalmente integrados.
De acordo com um artigo desenvolvido a partir da minha dissertação de mestrado e recém publicado na Revista Estudos Avançados do IEA-USP, em que estudei de forma aprofundada 14 artigos científicos, apresento que as funções da Agricultura Urbana e Periurbana podem ser divididas em três principais dimensões: sociocultural, econômica e ambiental.
A dimensão sociocultural compreende papéis da Agricultura Urbana e Periurbana tais como segurança alimentar e nutricional, saúde, coesão social, requalificação do espaço urbano, segurança pública, empoderamento feminino, reconexão com a natureza, educação alimentar e nutricional, desenvolvimento cultural, valorização do patrimônio cultural, lazer e recreação. Destaco aqui que a melhora da segurança alimentar e nutricional com a prática da Agricultura Urbana e Periurbana ocorre por meio da produção para consumo dos próprios agricultores e do incremento na renda com a venda de produtos nos mercados locais e regionais, possibilitando a compra de outros alimentos não produzidos nas hortas locais. Ou seja, a Agricultura Urbana e Periurbana possui a capacidade de fornecer alimentos para sistemas alimentares urbanos, permitindo, assim, a disponibilização especialmente de alimentos frescos e nutritivos para populações localizadas em regiões onde comumente estes últimos são escassos. Vale lembrar que de acordo com o Guia Alimentar para a População Brasileira (2014) o incremento no consumo de frutas e vegetais contribui diretamente para a melhora na saúde dos envolvidos. Além disso, a Agricultura Urbana e Periurbana permite acesso a alimentos em casos de dificuldades de abastecimento, como inflação descontrolada, aumento nos preços dos combustíveis, greves de caminhoneiros, eventos ambientais e sanitários extremos, como a pandemia da Covid-19.
Já a dimensão econômica inclui redução da pobreza, geração de empregos e renda, valorização do contato social entre produtores e consumidores, estímulo a novas formas de distribuição e comercialização, menor dependência do mercado mundial de alimentos e diversificação de atividades econômicas. Na prática a melhoria de vida dos cidadãos urbanos por conta da Agricultura Urbana e Periurbana se dá com a redução de gastos com a alimentação dos agricultores, uma vez que há produção de alimentos para o consumo da família, geração de renda e aumento da remuneração pela venda dos alimentos e criação de empregos ao longo de toda cadeia produtiva, oferecendo trabalho para a população local e também para grupos vulneráveis. Além disso, esta agricultura possui uma característica bastante relevante: a proximidade entre a produção e o mercado consumidor. Tal fato influencia diretamente na maneira como agricultores e consumidores se relacionam e nas formas de abastecimento, o que gera consequências positivas como a valorização do contato entre produtores e consumidores, o fato dos agricultores passarem a conhecer melhor as demandas e expectativas dos mercados consumidores e maior valor agregado dos produtos associados a mercados diferenciados, notadamente se os alimentos forem de origem agroecológica.
Finalmente, a dimensão ambiental é composta por funções que contribuem para a mitigação e adaptação às mudanças climáticas, com ênfase para conservação da biodiversidade, dos recursos naturais, da agrobiodiversidade, ciclagem de resíduos orgânicos, água e nutrientes, gestão eficiente dos recursos hídricos, cidades mais verdes e redução da pegada ecológica. Um dos maiores destaques citado no artigo acima referido é a ciclagem de nutrientes de resíduos urbanos e das águas. Exemplificando: as águas provenientes de pias e máquinas de lavar roupas, chamadas de águas cinzas, podem ser reutilizadas quando tratadas e destinadas para irrigação. Já os resíduos urbanos - especialmente os orgânicos - podem ser usados como fertilizantes mediante compostagem adequada. A gestão dos recursos hídricos, por sua vez, oferece outros benefícios, tais como o aumento de áreas com solos permeáveis e favoráveis à infiltração das águas, com consequente reposição dos lençóis freáticos e controle de enchentes e deslizamentos. Nesta dimensão, a proximidade da produção com os mercados consumidores e a redução do circuito de fornecimento também é importante, uma vez que promove a redução da emissão de Gases de Efeito Estufa, dos custos de transporte, além do menor processamento, armazenamento e uso/custos de embalagens.
A pandemia da Covid-19 ressalta ainda mais algumas das funções que a Agricultura Urbana e Periurbana podem desempenhar. Em São Paulo, agricultores da Associação de Agricultores da Zona Leste (AAZL) tiveram aumento na demanda de seus produtos, garantindo renda para a família em um momento de crise sanitária e econômica, e promovendo o fornecimento de alimentos para as cidades. Também neste período, ganhou visibilidade a horta comunitária na comunidade de Manguinhos, na cidade do Rio de Janeiro. Esta horta produz aproximadamente duas toneladas de alimentos os quais são doadas para alimentar famílias garantindo segurança alimentar para esta comunidade. Além disso, os agricultores afirmam que os cidadãos envolvidos na horta aprenderam a se alimentar melhor, e que algumas destas pessoas saíram do tráfico, do desemprego e da depressão para trabalhar com a produção de alimentos.
Assim, a prática da Agricultura Urbana e Periurbana tem esse potencial multifuncional e compreendemos que suas diversas formas apresentam benefícios reconhecidos que podem ser valorizados por meio de políticas públicas ampliando, não apenas a escala destas iniciativas, mas também, sua utilização como estratégia para o desenvolvimento de sistemas alimentares mais saudáveis e sustentáveis, em especial na transformação dos ambientes urbanos e periurbanos.
Referências:
CURAN, Roberta Moraes ; MARQUES, Paulo Eduardo Moruzzi. Multifuncionalidade da agricultura urbana e periurbana: uma revisão sistemática. Estudos Avançados, v. 35, n. 101, p. 209–224, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ea/a/KLxvJknRQCj9pXzK4kSNxQC/?format=pdf&lang=pt
CURAN, Roberta Moraes. Multifuncionalidade da agricultura urbana de base agroecológica: um estudo na Zona Leste do município de São Paulo/SP. 2021. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/91/91131/tde-07012021-165758/pt-br.php
Guia alimentar para a população Brasileira. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_alimentar_populacao_brasileira_2ed.pdf
FERREIRA, Jaqueline. Agricultura urbana faz a diferença em tempos de pandemia. Nexo Jornal. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/debate/2020/Agricultura-urbana-faz-a-diferen%C3%A7a-em-tempos-de-pandemia
Conheça o projeto Horta Manguinhos do Rio de Janeiro. Engenharia 360 | Engenharia para Todos. Disponível em: https://engenharia360.com/horta-comunitaria-manguinhos-do-rio-de-janeiro/
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Sobre a autora:
Roberta possui experiência de dez anos em pesquisa e trabalhos técnicos focados em sustentabilidade, mudanças climáticas, agricultura, alimentação e transição para sistemas alimentares sustentáveis nos setores público, privado e academia. Formada em Engenharia Ambiental, mestre em Ecologia Aplicada e doutoranda no Programa de Ecologia Aplicada (ESALQ/USP).
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