Você sabia que o Brasil é considerado como um país que possui uma agenda avançada quando o tema é a alimentação escolar? Neste texto vamos contar um pouco sobre o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), os motivos pelos quais este programa é considerado uma referência global e seu contexto no cenário internacional da alimentação escolar.
Histórico e avanços do PNAE
Primeiramente, queremos trazer um breve histórico do PNAE, que apesar de ter sido institucionalizado com este nome no ano de 1979, possui suas origens na década de 1940. Com a promulgação da Constituição Federal, em 1988, o direito à alimentação escolar a todos os alunos do ensino fundamental passou a ser assegurado por meio de programa suplementar de alimentação escolar a ser oferecido pelos governos federal, estaduais e municipais. A partir de então, o PNAE foi evoluindo, se adequando e adaptando para que o direito à alimentação dos estudantes de escolas públicas fosse de fato garantido. Aqui é importante contar que a proposta do PNAE é o custeio por parte do governo federal com a alimentação escolar independentemente se as escolas são de gestão municipal, estadual ou federal.
Entre os diferentes avanços e regulações que foram conformando o PNAE, gostaríamos de destacar alguns deles. O primeiro é a instituição do Conselho de Alimentação Escolar (CAE) como órgão deliberativo, fiscalizador e de assessoramento para a execução do Programa em todos os municípios no ano de 2000. Também se destaca a Medida Provisória n° 2.178, de 2001 que passou a regular a obrigatoriedade de que 70% dos recursos transferidos pelo governo federal fossem aplicados exclusivamente em produtos básicos e com respeito aos hábitos alimentares regionais e à vocação agrícola do município. Já a sanção da Lei nº 11.947, em 2009, trouxe diversas melhorias, como a extensão do Programa para toda a rede pública de educação básica, e a garantia de que, no mínimo, 30% dos repasses do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) fossem investidos na aquisição de produtos da agricultura familiar. Finalmente, apontamos a Resolução FNDE nº 6/2020 que incorporou diversas recomendações dos impactos do processamento de alimentos na saúde da população e, na prática, tem como intuito estimular que a alimentação escolar seja baseada em mais alimentos saudáveis, in natura ou minimamente processados, e menos processados e ultraprocessados.
Inovação e ineditismo do PNAE
A alimentação escolar é uma possibilidade de atuação central para lidar com diversas partes dos sistemas alimentares, especialmente por meio de três principais linhas de atuação e estratégia, as quais foram sendo construídas ao longo dos anos e que configuram a inovação e ineditismo do Programa. A primeira é a estratégia de Segurança Alimentar, já que garante, enquanto direito, a alimentação gratuita universal para todo e qualquer estudante da rede pública da educação básica do país, o que representa mais de 80% dos estudantes brasileiros. A segunda estratégia é a de Segurança Nutricional, que se inicia a partir de 2009, com a já mencionada Lei nº 11.947, e que passa a incorporar na oferta dos alimentos uma alimentação escolar, nutricionalmente adequada, respeitando a soberania alimentar das populações e influenciando diretamente na comunidade de famílias envolvidas. A terceira e última se refere ao poder que a compra pública de alimentos pode ter na valorização da agricultura familiar e local. A regulação vigente define que a compra de alimentos para a alimentação escolar deve respeitar 30% do volume total, sendo proveniente da agricultura familiar, prioritariamente local. Ou seja, além das estratégias de Segurança Alimentar e Nutricional, o PNAE funciona também enquanto uma estratégia de abastecimento alimentar e desenvolvimento rural.
Este último ponto referido, o das compras públicas enquanto oportunidade de incidência para transformação dos sistemas alimentares é o foco do relatório publicado pela FAO intitulado Public food procurement for sustainable food systems and healthy diets, o qual apresenta as compras públicas sustentáveis enquanto ferramenta de desenvolvimento, especialmente no caso dos programas de alimentação escolar. Enquanto ferramenta, as compras públicas podem ser útil uma vez que tem a capacidade de estimular o desenvolvimento de mercados, fornecer uma fonte de renda regular e confiável para pequenos agricultores, além de ajudá-los a superar as barreiras que os impedem de aumentar sua produtividade; ademais, são também um meio de estimular e valorizar produções agrícolas tradicionais, locais e agroecológicas, com potenciais impactos positivos em toda a cadeia produtiva.
As cidades participantes do LUPPA - Laboratório Urbano de Políticas Alimentares nos apresentam diversos destes exemplos inspiradores, os quais podem ser encontrados com detalhes no Cadernos LUPPA 1ª Edição e no Cadernos LUPPA 2ª Edição. Santarém, localizada no Pará, por exemplo, faz parte da Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos no Amazonas (Catrapoa), criada e coordenada pelo Ministério Público Federal, com o intuito de promover a compra de alimentos produzidos localmente, por pequenas unidades familiares, produtivas ou extrativistas, e por coletivos indígenas, a fim de melhorar a qualidade da alimentação escolar na rede pública. Já Maricá, no Estado do Rio de Janeiro, tem praticamente 100% das compras públicas para a alimentação escolar proveniente da agricultura familiar, com incentivo direto à agricultura local e de base agroecológica.
PNAE enquanto inspiração internacional para programas de alimentação escolar
A efetivação do tripé de estratégias - segurança alimentar, segurança nutricional e abastecimento alimentar e desenvolvimento rural - especialmente entre os anos 2009 e 2015, fez com que o PNAE passasse a ser inspiração de modelo de política pública de sucesso para outros países da América Latina e Caribe e também em países africanos. Ainda durante este período, em 2014, o Brasil lança uma nova edição do Guia Alimentar para a População Brasileira, que inclui agora como base das recomendações a classificação NOVA, uma categorização de alimentos baseada em como e por que os produtos alimentícios são submetidos a processamentos industriais antes de ser adquiridos ou consumidos. Este documento passou não somente a ser a base para a Resolução FNDE nº 6/2020, já citada anteriormente, mas também uma referência de Guia Alimentar para todo o mundo.
Apesar da conjuntura política-econômica do Brasil, em 2021, o país leva para a primeira Cúpula da ONU sobre Sistemas Alimentares a experiência do PNAE e permite que este Programa seja a base para se pensar em uma solução universal para a alimentação escolar, a partir da soma de suas três estratégias. Neste contexto, ainda durante a Cúpula, é criada a Coalizão para a Alimentação Escolar que congrega, atualmente, 94 Estados membros e mais de 109 parceiros, entre organizações da sociedade civil, instituições de pesquisa e fundações filantrópicas. Seus pilares centrais incluem o aperfeiçoamento dos programas de alimentação escolar, a promoção de uma dieta saudável e adequada a todas as crianças e adolescentes em idade escolar, bem como a valorização da agricultura familiar local.
Já neste ano de 2023, ocorreu em julho o UN Food Systems Summit +2 Stocktaking Moment (UNFSS+2), um encontro de monitoramento da Cúpula da ONU sobre Sistemas Alimentares, para apresentação do progresso dos países em relação aos objetivos e compromissos então traçados, e que também funcionou enquanto um convite à apresentação de propostas práticas e inovadoras para definir uma nova direção para a transformação dos sistemas alimentares. Foi neste âmbito que os Programas de Alimentação Escolar foram destacados e apresentados enquanto contribuição eficaz, acessível e prática para tal transformação. Como consequência do UNFSS+2, foi lançado o documento “Programas de refeições escolares: Um pilar em falta na reforma dos sistemas alimentares”, encomendado pela Sustainable Financing Initiative (SFI) for School Health and Nutrition e escrito por Kevin Watkins em colaboração com especialistas de diversos locais do mundo, e participação da nossa diretora Juliana Tângari. A publicação é focada em debater como os Programas de Alimentação Escolar - atualmente um dos maiores sistemas de segurança social do mundo - podem combater a fome, criar oportunidades de aprendizagem e fortalecer a saúde pública.
Assim, apesar de reconhecermos os gargalos e desafios práticos na implementação do PNAE, tais como a dificuldade de operacionalização da compra da agricultura familiar local e a ampliação do incentivo à produção ecológica e de comunidades tradicionais, é preciso compreender sua potencialidade de influenciar a vida não somente dos estudantes que recebem a alimentação - e a educação alimentar que dela decorre - durante suas estadias escolares, mas também de seus familiares, de agricultoras e agricultores familiares, e toda uma cadeia.
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