O tema da circularidade tem ganhado relevância e destaque quando falamos de sistemas alimentares. Mas na prática, o que podemos considerar como sistemas alimentares circulares? O que seria um modelo circular e um modelo linear, ultrapassado? Quais as práticas e de que forma os sistemas alimentares podem se utilizar de ferramentas para serem circulares? Neste texto apresentamos os principais aspectos e discussões sobre este tema.
Vamos começar lembrando que a economia circular surge na contramão da chamada economia linear. Esta se fundamenta em um sistema unidirecional, ou seja, na direção do fluxo da matéria-prima para o descarte e consiste essencialmente em extrair-produzir-desperdiçar. Este sistema acaba por não utilizar todo o potencial dos materiais e, por isso, ser poluidor, colaborando diretamente para desafios como mudanças climáticas, perda de biodiversidade, poluição e produção de resíduos.
Foram diversas as escolas de pensamento que influenciaram o desenvolvimento da proposta de economia circular, que tem em seu cerne encarar estes desafios por meio de soluções sistêmicas baseadas em três princípios básicos: eliminar os resíduos e a poluição, fazer circular os produtos e materiais (pelo seu valor mais elevado) e regenerar a natureza.
Em 2015 dois principais acontecimentos são responsáveis pela consolidação do conceito da economia circular no contexto global. O primeiro é o lançamento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), especialmente o ODS 12 - Consumo e Produção responsáveis, o qual busca garantir padrões de consumo e de produção sustentáveis, levando em conta a gestão sustentável e o uso eficiente dos recursos naturais. O segundo é a publicação do relatório “Safeguarding human health in the Anthropocene epoch: report of The Rockefeller Foundation–Lancet Commission on planetary health”, que apresenta o conceito de saúde planetária, o qual baseia-se em uma visão sistêmica de que a saúde planetária seria uma condição de saúde, bem-estar e equidade tanto dos sistemas naturais quanto dos sistemas humanos. O objetivo é tratar a sustentabilidade e a vida humana no planeta sob uma ótica integrativa, transdisciplinar e global. Neste documento, dentre os princípios para uma mudança transformadora está definida a importância de se caminhar em direção a uma economia circular.
Economia circular aplicada aos sistemas alimentares
Considerar os conceitos da economia circular nos sistemas alimentares é extremamente válido e nos questiona sobre os caminhos que estamos seguindo. Assim como a economia circular surge em oposição à economia linear, a proposta de sistemas alimentares circulares vem em oposição aos sistemas alimentares lineares. Ou seja, nestes últimos a produção de alimentos se baseia em um sistema que se fundamenta na extração de recursos para serem utilizados como fertilizantes, no desmatamento e na degradação de grandes extensões de área para serem utilizadas como áreas produtivas; a logística destes alimentos muitas vezes faz com que estes percorram milhares de quilômetros antes de chegar ao seus destinos finais; o consumo, especialmente de alimentos ultraprocessados é desenfreado, e muitos inclusive embalados em recipientes plásticos e o descarte, que se relaciona ao desperdício de alimentos que muitas vezes ainda estão em boas condições de consumo. Além de todos estes aspectos, as condições em que os agricultores e trabalhadores dos setores de alimentação vivem nem sempre são condições dignas, com salários e boas remunerações e tampouco uma alimentação adequada e saudável. Todas estas questões estão relacionadas com a forma como os sistemas alimentares hoje são estruturados e também na governança destes.
Durante a realização da Cúpula dos Sistemas Alimentares da ONU, em 2021, foram definidos cinco principais eixos de atuação para alavancar as transformações para sistemas alimentares mais saudáveis e sustentáveis. A consagração da abordagem dos sistemas alimentares circulares se deu neste contexto em que dentre os eixos de atuação foi definido o Eixo 2: Mudança para padrões de consumo sustentáveis. Este eixo de atuação busca aumentar a demanda dos consumidores por alimentos produzidos de forma sustentável, fortalecer as cadeias de valor locais, melhorar a nutrição e promover a reutilização e a reciclagem de recursos alimentares, especialmente entre os mais vulneráveis.
A Fundação Ellen Macarthur vem desenvolvendo uma proposta sobre economia circular dos alimentos. Em seu relatório Cidades e Economia Circular dos Alimentos discute que a economia circular oferece uma visão para um sistema alimentar adequado ao futuro e destaca a relevância e potencial das cidades para iniciarem e incitarem uma transformação voltada à economia circular dos alimentos. Nessa visão, o conceito da economia circular é aplicado e, todo o sistema alimentar está focado numa melhora das condições ambientais e socioeconômicas.
Em outras palavras, a economia circular dos alimentos busca regenerar os sistemas naturais, fazendo com que os resíduos passem a ser insumos em novos ciclos. No caso dos recursos orgânicos, por exemplo, estes podem ser retornados ao solo como fertilizante orgânico. Outros coprodutos podem ter distintos usos e valores agregados, como novos produtos alimentícios, tecidos para a indústria da moda, ou como fontes de bioenergia.
Neste contexto, o relatório sugere três ambições para que as cidades possam explorar em busca de uma economia circular dos alimentos, as quais iremos explorar em detalhes a seguir:
I) Adquirir alimentos produzidos de forma regenerativa e, quando fizer sentido, localmente
A demanda de alimentos das cidades pode ser um ótimo ponto de partida para influenciar e incentivar a produção de alimentos com práticas regenerativas. Estas, são consideradas como uma das alternativas para reconstrução, e não degradação, dos ecossistemas. De acordo com o relatório, as abordagens consideradas como regenerativas incluem pastagem rotativa; restauração dos sistemas naturais; agroecologia; agroflorestas; agricultura de conservação; novos métodos de produção de frutos do mar; agricultura natural de orçamento zero, entre outras. A proposta de se pensar uma agricultura regenerativa foca em buscar os resultados para regenerar as paisagens, especialmente baseada no cuidado com o solo, por meio do uso de material orgânico para melhora na qualidade dos solos, capacidade de retenção de água e população microbiana, juntamente com uma melhor diversidade de culturas, espécies animais e biodiversidade.
Além disso, o uso de novas tecnologias podem ser eficientes para cultivar alimentos de forma regenerativa e local, sem é claro propor apenas soluções tecnocráticas e que não sejam adaptadas à realidade socioambiental local, tais como: inovações na criação de fertilizantes orgânicos sofisticados, efetivos e consistentes; inovações como alternativas biológicas a pesticidas sintéticos; novos desenvolvimentos em tecnologias de produção de alimentos; tecnologias de rastreabilidade aprimoradas; e aplicação de inteligência artificial.
Mais do que apenas pensar em uma produção local, este item traz luz à importância de estruturar cadeias de abastecimento resilientes.
II) Aproveitar os alimentos ao máximo, gerando coprodutos para a bioeconomia
Como comentamos anteriormente, um dos princípios da economia circular é a não produção de resíduos e o não desperdício. Ao aplicar este princípio aos alimentos, a proposta é que o uso dos alimentos seja previsto em ciclos, de forma que os coprodutos de um empreendimento sejam insumos para um próximo. Na prática, isso significa que o excedente dos alimentos consumidos pode ser redistribuído ainda como alimentos comestíveis, mas também pode ocorrer a transformação em coprodutos não comestíveis, tais como fertilizantes orgânicos, biomateriais, remédios, bioenergia e até mesmo materiais têxteis.
Existem diversas práticas que podem contribuir para que os alimentos sejam de fato aproveitados ao máximo incentivando a circularidade dos sistemas alimentares. Dentre elas podemos citar o oferecimento de descontos em produtos prestes a vencer, o uso de produtos maduros como ingredientes para receitas em restaurantes e mercados; o estímulo a compras de alimentos considerados fora do padrão estético, entre outros.
No entanto, para além dos resíduos orgânicos provenientes dos alimentos comestíveis, há uma geração constante de coprodutos de alimentos não comestíveis, como os resíduos humanos e os resíduos verdes. A coleta, tratamento e uso destes resíduos pode ser uma ótima oportunidade para a captura máxima dos benefícios desses materiais. É importante lembrar, que é essencial evitar a contaminação dos fluxos de material orgânico para permitir que eles sejam usados em seu maior valor.
Outro ponto a ser pensado dentro deste item é o uso de embalagens nos produtos alimentícios. Já sabemos que as embalagens plásticas e de isopor podem provocar poluição dos solos e águas, e com o intuito de enfrentar este desafio, foram criadas embalagens compostáveis. Estruturar sistemas alimentares circulares, contudo, vai além do desenvolvimento de estratégias localizadas e busca desenvolver medidas que possam eliminar as necessidades de embalagens para sempre.
III) Desenvolver e comercializar produtos alimentícios mais saudáveis
Desenvolver e comercializar produtos alimentícios mais saudáveis significa não somente nutricionalmente saudáveis, mas também saudável em todos os processos que estão envolvidos desde sua produção até o consumo. Nesta ambição, é bastante destacado o papel das organizações em desenvolver produtos que utilizem ingredientes produzidos de forma regenerativa e, quando possível, local, além de comercializar e posicionar os produtos para que se tornem um opção viável e acessível para a população.
Dentre as alternativas apresentadas pelo relatório estão o desenvolvimento e a comercialização de novas opções de proteína vegetal e a inclusão de coprodutos de outros processamentos de alimentos em receitas.
Ainda nesta linha, o Guia para gestores públicos: Sistemas Alimentares Circulares na América Latina desenvolvido pelo ICLEI, ao incorporar a proposta da economia circular aos sistemas alimentares, propõe de maneira bastante ampla as seguintes ações: priorização da produção regenerativa; favorecimento de práticas de reutilização e compartilhamento; redução da extração de recursos da natureza e a poluição; e garantia da recuperação de recursos para usos futuros.
Ou seja, as propostas e ações que estimulam a circularidade dos sistemas alimentares geram benefícios ambientais, socioeconômicos e de saúde. Vamos juntos fomentar esta transformação dos sistemas alimentares e nos aprofundar ainda mais neste tema tão relevante? No próximo texto do nosso blog iremos apresentar diversos casos práticos e que ocorrem ao redor do mundo sobre sistemas alimentares circulares.
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